A tripla carga da má-nutrição - compreendida como a coexistência de desnutrição, deficiências de micronutrientes e sobrepeso e obesidade - é agravada pela alta prevalência de insegurança alimentar e nutricional. Por sua abrangência, o Sistema Único de Saúde (SUS) é vital na promoção, prevenção, diagnóstico e tratamento deste problema.
O propósito da Política Nacional de Alimentação e Nutrição (PNAN), que orienta a Atenção Nutricional no SUS, é promover a saúde da população. A atenção nutricional deve integrar a Rede de Atenção à Saúde (RAS), tendo a Atenção Primária à Saúde (APS) como coordenadora do cuidado e ordenadora da rede. O enfrentamento deverá começar pelo diagnóstico da situação alimentar e nutricional da população, utilizando como ferramenta a Vigilância Alimentar e Nutricional (VAN), uma das diretrizes da PNAN que avalia o estado nutricional e consumo alimentar da população, permitindo planejar intervenções necessárias.
Neste cenário, o aumento da cobertura pelo Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional SISVAN - sistema eletrônico onde são inseridos e compilados os dados coletados nas ações da VAN - é indispensável ao planejamento de ações de saúde, assim sua incorporação na rotina da APS, tendo o Guia Alimentar para a População Brasileira (GAPB) - documento oficial do Ministério da Saúde (MS) com recomendações para uma alimentação adequada e saudável – como apoio para a qualificação dos profissionais.
Por fim, o projeto QualiGuia APS visa aprimorar a organização da Vigilância Alimentar e Nutricional no SUS, reforçar o papel de atuação dos profissionais da APS na promoção da alimentação adequada e saudável, reforçar a importância dos indicadores do SISVAN como instrumentos do cuidado, promover a utilização dos Protocolos de Uso do Guia Alimentar na rotina de atendimentos dos profissionais de nível superior da APS e implementar o Guia Alimentar para a População Brasileira como uma tecnologia de saúde no cuidado ofertado pelos profissionais da APS.
Em 2014, o Brasil deixou o Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas (ONU) para retornar cerca de quatro anos depois. Entre o final de 2021 e meados de 2022, dados trazidos pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (PENSSAN) mostraram que 33 milhões de pessoas estão em situação de fome. Em 2020, eram 19,1 milhões, ou seja, 14 milhões de novos brasileiros entraram em situação de insegurança alimentar grave. Por outro lado, o Atlas da Situação Alimentar e Nutricional do Brasil, elaborado pelo MS em 2020, mostrou que 63% da população adulta sofre de sobrepeso ou obesidade. Entre crianças de 5 e 9 anos de idade, a prevalência de excesso de peso chegou a 29,3%.
Em 2011, a obesidade afetava cerca de 15% da população adulta brasileira e os custos diretos atribuíveis à doença no Brasil totalizaram US$ 269,6 milhões, representando 1,86% dos gastos com cuidados em saúde de média e alta complexidade. Em 2018, os custos totais com hipertensão, diabetes e obesidade - principais doenças crônicas associadas à alimentação inadequada - saltaram para R$3,45 bilhões, dos quais 11% era custo com a obesidade no Sistema Único de Saúde (SUS). No total, 72% das despesas eram com indivíduos de 30 a 69 anos de idade e 56% com mulheres.
Considerando separadamente a obesidade como fator de risco para hipertensão e diabetes, os custos atribuíveis a essa doença chegaram a R$ 1,42 bilhão, ou seja, 41% dos custos totais. Estimativas apontam que se mantidas as atuais tendências de aumento do Índice de Massa Corporal (IMC) de 2021 a 2030, poderão ocorrer aproximadamente 5,26 milhões de novos casos de excesso de peso e 808,6 mil mortes por doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) devido a essa condição. Por outro lado, reduções no IMC poderiam prevenir de 30.715 a 168.431 mortes, enquanto modificações na alimentação reduziriam em torno de 1,03% e 4,63% das mortes por causas evitáveis. Essas mudanças economizariam de R$ 50 a R$219 milhões em hospitalizações e R$239 a R$804 milhões anualmente em perdas de produtividade com a redução de mortes prematuras.
Assim, este projeto visa apoiar o diagnóstico e a intervenção alimentar e nutricional, na perspectiva do Guia Alimentar para a População Brasileira, na Atenção Primária à Saúde. O estudo se vincula a objetivos do Plano Nacional de Saúde 2020-2023, para promover a ampliações de serviços da atenção primária de forma integrada e planejada; fomentar a produção do conhecimento científico, dando acesso a população às tecnologias em saúde de forma equitativa, igualitária, progressiva e sustentável; e aperfeiçoar a gestão do SUS visando a garantia do acesso a bens e serviços de saúde.
Para isso, ele qualificará os profissionais da APS na Vigilância Alimentar e Nutricional e para orientação alimentar a partir do Guia Alimentar para a População Brasileira.
Serão trabalhadas as seguintes entregas e atividades:
1) desenvolvimento e articulação: essa fase é composta pelo desenvolvimento da formação educativa para qualificação da VAN e uso do GAPB e elaboração dos materiais; seleção de 120 municípios do país a partir de critérios pré-estabelecidos; e pactuação federal e estadual do projeto;
2) ciclos municipais: pactuações com as gestões municipais, escalonadas em dois ciclos de 60 municípios cada; seleção, contratação e formação de facilitadores locais; construção de vínculo com os municípios, a partir das visitas dos facilitadores locais, com reuniões com a gestão da APS e os responsáveis técnicos pela área de Alimentação e Nutrição e visitas às unidades de saúde; desenvolvimento do diagnóstico municipal da situação da atenção nutricional no âmbito da APS; oficinas com os profissionais da APS nos municípios, coma elaboração de planos de ação para execução no período de intervenção do projeto; elaboração de agenda participativa com atividades presenciais e virtuais com os profissionais dos municípios, incluindo o curso EaD QualiGuia; apoio às atividades relacionadas à Vigilância Alimentar e Nutricional e Promoção da Alimentação Adequada e Saudável nas unidades de saúde; monitoramento e avaliação dos planos de ação pelas especialistas BP com os facilitadores locais; processo coletivo de avaliação da intervenção nos municípios e elaboração dos relatórios finais pelos facilitadores, tendo como base o diagnóstico inicial frente ao plano de ação executado.
3) Avaliação final: nessa última etapa ocorrerá a avaliação geral de resultados do projeto nos 120 municípios, considerando as avaliações parciais de cada ciclo; a elaboração dos relatórios finais; a construção de um caderno de experiências a partir do processo avaliativo; e a avaliação de impacto nos indicadores do SISVAN.
Na dimensão local, o projeto QualiGuia APS irá atuar no nível das regionais de saúde dos estados, interagindo na esfera de interlocução com as secretarias estaduais e municipais de saúde dos municípios selecionados, a fim de favorecer e potencializar o contato e trabalho em rede, a otimização de recursos necessários para o deslocamento das equipes de colaboradores para as atividades presenciais e a sustentabilidade das ações desenvolvidas.
Esse projeto irá alcançar como resultado o desenvolvimento de iniciativas como: fortalecimento da VAN nos territórios e disseminação do uso do GAPB na APS, por meio da implementação dos Protocolos de Uso do GAPB. Essa atuação se dará através das seguintes ações: aprimoramento das habilidades e competências dos profissionais da APS para realização da VAN; qualificação dos profissionais da APS para utilização dos Protocolos de Uso do GAPB; apoio à implementação dos Protocolos de Uso do GAPB na rotina da APS; digitalização dos Protocolos de Uso do GAPB para incorporação na rotina e prática profissional, a partir de uma ferramenta digital interativa no formato eletrônico, aberta e sustentável, compatível com dispositivos, e interoperável com os Sistemas de Informação já disponíveis no SUS; e apoio à gestão municipal no cumprimento da agenda de alimentação e nutrição.