Segundo a Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC), a hipercolesterolemia familiar (HF) é uma causa genética comum de doença coronariana prematura (condição que afeta os vasos sanguíneos que fornecem sangue e oxigênio para o músculo cardíaco), especialmente de ataque cardíaco, devido à exposição ao longo da vida a altas concentrações de colesterol da lipoproteína de baixa densidade (LDL-c). A HF afeta, aproximadamente, uma em cada 300 pessoas na população em geral, sendo que a prevalência pode ser até 18 vezes maior em indivíduos com doença cardiovascular aterosclerótica (quando ocorre acúmulo de placas de gordura e cálcio nas paredes das artérias, o que pode levar a diminuição do fluxo sanguíneo de nutrientes e oxigênio).
Dados do Estudo Longitudinal de Saúde do Adulto (ELSA-Brasil) mostram que, no Brasil, cerca de 766 mil pessoas são afetadas por alguma forma de HF (uma a cada 263), sendo mais comum em mulheres, em negros e entre pessoas de 56 e 65 anos de idade. Ainda segundo pesquisas, mesmo em uso de medicamentos, portadores de HF apresentam risco 10 vezes maior para o desenvolvimento de doença arterial coronariana (DAC) e chance de 5 a 10% para ocorrência de eventos coronarianos antes dos 50 anos. Se não tratados, 85% dos homens e 50% das mulheres com HF podem ter um evento cardiovascular antes de completar os 65 anos de idade.
Entre as principais características da HF, destaca-se a elevação severa do LDL-c, também conhecido como "colesterol ruim", uma partícula de gordura que circula no sangue e pode se acumular nas paredes das artérias, aumentando os riscos de doenças cardíacas e derrames cerebrais. O colesterol LDL é produzido naturalmente pelo fígado, sendo que seus níveis no sangue podem ser aumentados em casos de alimentação rica em gorduras saturadas, colesterol, gorduras trans e carboidratos refinados.
Diagnóstico e tratamento
Ainda de acordo com a SBC, os critérios clínicos e laboratoriais para o diagnóstico da HF são inconclusivos e baseiam-se nos dados de alterações no estado de saúde que o médico observa durante uma avaliação clínica (como os acúmulos de colesterol que se formam fora dos vasos sanguíneos), laboratoriais (concentrações elevadas de LDL-c ou colesterol total no plasma), na história familiar de hipercolesterolemia e/ou doença aterosclerótica prematura, além da identificação de alterações genéticas que favoreçam o desenvolvimento da HF. A SBC recomenda a utilização de critérios simples para a suspeita diagnóstica e para a decisão de se iniciar o tratamento.
Embora avanços recentes tenham levado a um aumento do número de tratamentos eficazes que são capazes de alterar o desenvolvimento de doenças cardiovasculares hereditárias e melhorar os desfechos clínicos, são fundamentais o rastreamento e diagnóstico precoces para alcançar o benefício destes tratamentos. Em relação à HF, são frequentes os relatos de subdiagnóstico mesmo em países desenvolvidos, assim como uma taxa elevada de tratamentos inadequados.
No entanto, já se sabe que, quanto mais cedo o diagnóstico de HF, maior a chance de indicação da terapia medicamentosa e das orientações para modificação de estilo de vida.
Porém, ainda não está clara qual a melhor forma de rastrear esses indivíduos em larga escala. Atualmente, por meio da Portaria Conjunta nº 8 de 30 de julho de 2019 referente ao Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas da Dislipidemia (prevenção de eventos cardiovasculares e pancreatite), estão incorporados para uso no Sistema Único de Saúde (SUS) os seguintes medicamentos para tratamento da HF com diagnóstico definitivo de acordo com o critério Dutch Lipid Clinic Network (Dutch MEDPED): estatinas (com exceção da rosuvastatina), fibratos e ácido nicotínicos.
Intervenções dietéticas como parte do tratamento
Com relação às intervenções dietéticas, que são alterações na alimentação realizadas com o objetivo de melhorar a saúde ou tratar uma condição médica específica, o Protocolo traz recomendações para diminuição das gorduras saturadas (presentes na gordura de origem animal, por exemplo), colesterol alimentar e exclusão das gorduras trans (geralmente encontrados em gorduras vegetais hidrogenadas, margarinas, sorvetes, e nos alimentos ultraprocessados em geral) da dieta, substituindo-os por gorduras monoinsaturadas (encontradas no azeite de oliva, abacate e oleaginosas) e poli-insaturados (presente principalmente nos peixes e óleos de origem vegetal). Não há recomendações específicas com relação a padrões alimentares, suplementos ou nutrientes diferenciados que poderiam auxiliar na modulação do perfil lipídico, a um custo mais acessível comparativamente a determinados medicamentos.
No entanto, para que sejam consideradas pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (CONITEC) como potencial tratamento para HF, essas intervenções precisam ser rigorosamente testadas previamente à sua incorporação na saúde pública.
A Alimentação Cardioprotetora Brasileira (DICA Br) - abordagem dietética que visa proteger o coração e prevenir doenças cardíacas - já é reconhecida pelo Ministério da Saúde por ser uma proposta de alimentação saudável, acessível e baseada em diretrizes nutricionais para controle de fatores de risco cardiovascular. A DICA Br foi originalmente elaborada e vem sendo testada no contexto da prevenção cardiovascular secundária, e sua abordagem pode ser tanto quantitativa quanto qualitativa considerando que não somente o nutricionista, mas qualquer profissional da saúde estaria apto para indicá-la.
Adaptar a DICA Br para o contexto da HF e avaliar a sua efetividade de forma isolada ou acrescida de suplementos nutricionais já reconhecidos, como os fitosteróis, ou ainda não testados nessa população, como o óleo de krill (alternativa mais sustentável para a ingestão de ácidos graxos ômega-3 em comparação ao óleo de peixe), ampliaria a gama de tratamentos dietéticos recomendados para esses pacientes. A ingestão desses nutrientes na forma de alimentos é baixa na população brasileira, não atingindo os níveis terapêuticos necessários e recomendados para o tratamento das dislipidemias – por isso, a necessidade de suplementação adjuvante.
No Brasil, a Alimentação Cardioprotetora inclui uma dieta regionalizada e de fácil acesso rica em frutas, legumes e vegetais, grãos integrais, peixes e aves, e pobre em gorduras saturadas e alimentos ultraprocessados. Adicionar fitosteróis ou óleo de krill à dieta pode ajudar a reduzir os níveis de colesterol no sangue em pacientes com HF. Os fitosteróis são compostos encontrados em alimentos vegetais como frutas, verduras,nozes, sementes e grãos, e têm sido mostrados para reduzir os níveis de colesterol no sangue. O óleo de krill é uma fonte natural de ácidos graxos ômega-3 e também pode ajudar a reduzir os níveis de colesterol.
Com base neste contexto, o projeto DICA-HF tem como objetivo conduzir um estudo piloto que gere elementos e avalie indicadores que embasem um ensaio clínico randomizado de maior escala para avaliar a efetividade de estratégias nutricionais para adultos com diagnóstico provável ou definitivo desta doença.
Faz parte do escopo adaptar, produzir materiais educativos de apoio ao aconselhamento e aplicar o DICA Br (programa baseado nas diretrizes nutricionais brasileiras, em uma alimentação regionalizada e acessível e em várias estratégias para aumentar a adesão à dieta que preze pela saúde do coração) modificado para o contexto da doença em questão, assim como capacitar os centros participantes para a realização dos protocolos do estudo e desenvolver e validar ferramentas operacionais para a condução do estudo. Ainda, um dos objetivos do projeto é realizar o sequenciamento do exoma dos participantes do protocolo.
Os principais desfechos de interesse são os níveis do LDL-c e da lipoproteína(a) entre os participantes; porém, outras moléculas lipídicas também serão avaliadas, assim como eventos adversos.
Benefícios ao SUS:
A iniciativa contribui diretamente para a ampliação do número de pessoas diagnosticadas genotipicamente (quando são identificadas as predisposições genéticas para determinadas condições) com doenças cardiovasculares hereditárias, intensificando o acesso a tratamento adequado não só medicamentoso, mas também relacionado à alimentação. Além disso, o estudo vai proporcionar evidências científicas para o aperfeiçoamento de intervenções clínicas e nutricionais adequadas, bem como o suporte financeiro de potenciais alternativas terapêuticas para o tratamento da HF que possam ser testadas em larga escala e incorporadas na rede pública de saúde.
Por fim, o projeto impacta no SUS por meio do treinamento de equipes multiprofissionais (nutricionistas, médicos, enfermeiros e fisioterapeutas) para a prática de educação alimentar e nutricional no contexto de saúde pública através dos materiais produzidos e treinamento oferecido no estudo, bem como do conjunto de ações realizadas com o objetivo de tratar e gerenciar a saúde dos pacientes com HF.
Trata-se de um estudo científico para avaliar a eficácia de um tratamento experimental em comparação com um placebo tendo como base a mudança alimentar com dieta a ser especificada a seguir, sendo que os participantes são aleatoriamente divididos em quatro grupos diferentes, cada um recebendo uma diferente combinação dos tratamentos. A pesquisa é realizada em âmbito nacional, contemplando cerca de 100 pacientes atendidos em 15 centros de pesquisa participantes estados de Goiás, Bahia, São Paulo, Minas Gerais, Rio De Janeiro, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, com encerramento previsto para o final de 2023.
Critérios de inclusão:
História Familiar
Exame físico
Níveis de LDL-c (mg/dl)
Análise do DNA
Fazer uso de um dos seguintes esquemas de tratamento há pelo menos 6 semanas:
Critérios de exclusão:
As intervenções a serem avaliadas na primeira etapa do estudo serão:
Para a fase 2 (ensaio clínico completo), pretende-se avaliar as mesmas intervenções, mas, a depender das tendências de efeito observadas no estudo piloto, bem como diferenças na frequência de eventos adversos de acordo com os grupos de alocação, pode-se realizar adaptações nos braços do estudo.
Adaptação da DICA Br para o contexto da HF:
Nesse projeto, a DICA Br será orientada de forma qualitativa e adaptada com a incorporação de algumas premissas da Dieta Portfólio, um padrão alimentar plant-based desenvolvido no início dos anos 2000 especificamente para reduzir concentrações de colesterol sérico. A Dieta Portfólio é pobre em gordura saturada e colesterol, com adição de alimentos à base de plantas (ou nutrientes) com propriedades redutoras de colesterol como nozes, proteínas vegetais (soja e leguminosas), fontes de fibras solúveis (aveia, cevada, psyllium, berinjela, quiabo, maçãs, laranjas e frutas vermelhas), esteróis vegetais e gorduras monoinsaturadas (azeite de oliva, óleo de girassol, óleo de canola, abacate).
Separação dos grupos:
Os indivíduos alocados no grupo 1 (controle) receberão materiais educativos para facilitar o entendimento e a adesão à DICA-HF, com exemplos práticos utilizando-se alimentos acessíveis e tipicamente brasileiros, respeitando a cultura e regionalidade das regiões do país. Além disso, os participantes receberão placebos de fitosterol e de óleo de krill, sendo estes da mesma cor, odor, sabor, aparência e na mesma quantidade de cápsulas dos respectivos princípios ativos.
Por exemplo, se o participante de um dos braços intervenção receber três cápsulas de fitosterol (totalizando 2g de princípio ativo), o participante do grupo controle receberá três cápsulas de placebo de fitosterol. O mesmo ocorrerá com o óleo de krill. Não haverá co-intervenções (aumento do nível de atividade física atual, medidas para redução do estresse, etc.) neste protocolo.
O grupo 2 receberá, além da orientação DICA-HF e dos materiais educativos, quantidade suficiente de cápsulas para garantir o fornecimento de 2g/dia de fitosteróis mais cápsulas do placebo do óleo de krill, na mesma quantidade do princípio ativo. Os produtos a serem adquiridos deverão fornecer no mínimo 800 mg de fitoesteróis livres, de acordo com a determinação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA).
O grupo 3 receberá, além da orientação DICA-HF e dos materiais educativos, quantidade suficiente de cápsulas para garantir o fornecimento de 2g/dia de óleo de krill mais cápsulas do placebo do fitosterol, na mesma quantidade do princípio ativo. Os produtos a serem adquiridos devem fornecer no mínimo 200mg de EPA e DHA a cada 1g.
O grupo 4 receberá, além da orientação DICA-HF e dos materiais educativos, quantidade suficiente de cápsulas para garantir o fornecimento de 2g/dia de fitosteróis e o fornecimento de 2g/dia de óleo de krill.
Todos os grupos serão orientados de forma idêntica com relação ao armazenamento e posologia dos produtos sob investigação (PSI). Preferencialmente, deverão ser ingeridos durante as principais refeições.
Os pacientes serão acompanhados por um período de quatro meses (120 dias). As visitas de acompanhamento serão realizadas aos 40, 80 e 120 dias (consulta final). Os pacientes serão contatados em datas próximas à consulta como um lembrete e todos receberão o mesmo número de ligações, mensagens ou e-mails. Em todas as consultas, os pacientes serão orientados a não realizar o descarte das embalagens até o final do estudo, trazendo no próximo encontro ou registrarem em fotografia em caso de impossibilidade de levarem até à consulta (pelo volume de material). As consultas 2 e 3 poderão ser realizadas de forma remota por não exigirem procedimentos clínicos e de coleta de exames, sendo a decisão a cargo do centro colaborador conforme a sua estrutura operacional de telemedicina e a gestão da logística para entrega de kits de tratamento aos participantes do estudo. As consultas 1 e 4 permanecerão com necessidade presencial devido avaliação física, antropométrica e coleta de material biológico. Além das presenças nas consultas e dos questionários de avaliação da dieta, a adesão dos pacientes ao protocolo será avaliada pela quantidade de fitosteróis e de ácidos graxos ômega-3 identificados no sangue.
Aconselhamento genético
O participante da pesquisa será questionado, quando da assinatura do TCLE, se quer ser cientificado sobre mutações genéticas que foram identificadas e tenham potencial impacto conhecido à sua saúde. O retorno dado ao participante referente ao laudo final será realizado de forma online por médico geneticista. As consultas de aconselhamento genético deverão ser realizadas como consultas extra às visitas do estudo, e estão previstas no TCLE do participante. O tempo de retorno do resultado/laudo ao paciente considerando o momento da coleta de saliva até a disponibilização do laudo pelos bioinformatas poderá variar; porém, estima-se que a partir do momento em que o laudo esteja disponível para o geneticista, essa consulta seja realizada em um prazo máximo de 15 dias considerando também a disponibilidade do participante.
Sequenciamento do exoma
O projeto pretende realizar algumas análises exploratórias considerando subgrupos específicos, de acordo com os resultados encontrados no sequenciamento do exoma:
* Identificado pelo cálculo P= NF/NG, onde: P: Penetrância; NF: número de pessoas que expressam fenótipo F; NG: número de pessoas com o genótipo G associado ao fenótipo F.
O protocolo de pesquisa foi elaborado durante o ano de 2022 e publicado em janeiro de 2024 na revista Clinical Nutrition Open Science (https://linkinghub.elsevier.com/retrieve/pii/S2667268524000056).
Foram selecionados e treinados 15 centros de pesquisa e 2 coparticipantes nas regiões Sudeste, Sul, Centro Oeste e Nordeste do país, totalizando a triagem de 256 indivíduos entre maio e agosto de 2023.
No total, 58 voluntários foram randomizados e acompanhamento até dezembro de 2023. A viabilidade do projeto foi testada e ajustada, a partir dos resultados, para sua continuidade em maior escala e tamanho amostral a partir do ano de 2024.
Ao longo de 2023, os voluntários passaram por sequenciamento genético para avaliação do exoma completo, acompanhado de aconselhamento genético antes e após a liberação dos resultados referentes a presença (ou não) de mutações relacionadas a HF bem como de achados secundários.
O biorrepositório previsto foi estabelecido a partir das amostras biológicas armazenadas de todos os participantes incluídos. A rede de pesquisa foi fortalecida e estimulada através de dois encontros de investigadores de todos os centros participantes realizado em junho e dezembro de 2023, com oportunidade para troca de experiências e aprofundamento profissional em pesquisa.
Em julho de 2023, a equipe do estudo participou de evento online para discussão de cuidados clínicos em HF, com divulgação do projeto (link de acesso: https://www.facebook.com/ahfcolesterol/videos/288868723625233).
Foram elaborados produtos educacionais destinados à disseminação para equipes de saúde e comunidade leiga a respeito do diagnóstico e educação nutricional na HF (infográfico sobre diagnóstico e etiologia da doença, cartilha de orientação alimentar em formato digital, impresso e vídeo, material de engajamento na forma de imã de geladeira), e quatro videoaulas destinadas a profissionais de saúde para apoio na formação técnica sobre bases genéticas, rastreamento e tratamento da HF.
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