Resumo

A anemia falciforme é uma doença genética comum no Brasil, que afeta a forma das células vermelhas do sangue devido a uma mutação na hemoglobina. Assim, a doença faz com que as hemácias assumam o formato de foice, fazendo com que estas células sejam destruídas prematuramente, causando uma escassez de glóbulos vermelhos saudáveis (anemia), e que ainda podem obstruir o fluxo sanguíneo em diferentes órgãos e tecidos, originando desde crises intensas de dor a infartos. Alguns de seus sintomas são infecções, dores e fadiga e os tratamentos, que visam apenas aliviar os sintomas e controlar a doença, incluem medicamentos, transfusões de sangue e, raramente, o transplante de células-tronco - terapia que tem limitações, pois encontrar um doador compatível é raro, e o tratamento utilizando as células-tronco de outras pessoas exige uso de imunossupressores para o resto da vida.

É importante desenvolver novos tratamentos para a doença e uma nova abordagem é a adoção da terapia gênica, que usa a tecnologia Conjunto de Repetições Palindrômicas Curtas Regularmente Espaçadas (CRISPR) para corrigir o gene defeituoso diretamente nas células do paciente, tornando-se uma alternativa promissora ao tratamento tradicional.

Inédito no país, o estudo Anemia Falciforme oferecerá esta possibilidade de tratamento inovador aos pacientes afetados pela anemia falciforme, ao empregar a terapia genética para tentar a cura da doença.

O desenvolvimento da tecnologia proposta nesse estudo e a oferta do resultante produto terapêutico ao Sistema Único de Saúde (SUS) beneficiarão os pacientes afetados pela doença. Além disso, geram plataformas tecnológicas para doenças que ainda não têm tratamentos ou cujas terapias disponíveis não são eficazes. E ainda, contribuem para a incorporação de protocolos de tratamento altamente avançados, complexos, personalizados e eficientes na rede pública de saúde.


Introdução

Entre as doenças genéticas com padrão de transmissão de características hereditárias determinadas por um único gene, a anemia falciforme destaca-se por sua alta prevalência, afetando milhões de pessoas globalmente. É particularmente prevalente entre populações de certas regiões africanas, e altamente prevalente em populações afrodescendentes, presentes nos Estados Unidos e Brasil. Na população brasileira, em geral, a mutação causadora da anemia falciforme pode ser encontrada em frequências que variam de 2% a 6%, podendo chegar até 10% na população negra.

Dados de 2002 do Ministério da Saúde (MS) apontam que existem entre 60 mil e 100 mil pacientes com a doença no país. Entre 2014 e 2020, a média anual de novos casos de crianças diagnosticadas com Doença Falciforme, no Programa Nacional de Triagem Neonatal, foi de 1.087, com uma incidência de 3,78 a cada dez mil nascidos vivos. A incidência e a prevalência da doença variam significativamente - ela é mais comum nas regiões Sudeste e Nordeste - refletindo também as disparidades no acesso aos serviços de saúde. Além disso, apesar de ser uma condição potencialmente grave, há poucas opções de tratamento disponíveis para os pacientes, o que limita suas chances de cura.

Uma alternativa promissora é a adoção da terapia gênica, que utiliza as próprias células do paciente para corrigir o problema. Desta forma, o estudo proposto no projeto visa criar um tratamento inovador e eficaz para a anemia falciforme, oferecendo uma alternativa que atualmente não está disponível no Brasil. Além de beneficiar diretamente os pacientes afetados pela doença, o desenvolvimento dessa tecnologia pode ajudar a tratar outros problemas e aprimorar os protocolos de tratamento no SUS.

O projeto está alinhado com a estratégia do Ministério da Saúde de expandir as terapias avançadas e envolve: pesquisa e desenvolvimento de terapia gênica, criação de centros de manufatura no SUS, capacitação de profissionais, e otimização de custos e processos.

Com o crescimento global do mercado de terapia gênica previsto para ser significativo, o Brasil tem a chance de se destacar nesta área, aproveitando seu histórico de sucesso com vacinas para desenvolver novas tecnologias e reduzir a dependência de produtos estrangeiros. Esse projeto não apenas melhoraria os tratamentos disponíveis, como também fortaleceria a capacidade nacional em ciência e tecnologia.

Além disso, a anemia falciforme afeta principalmente pessoas de grupos socioeconômicos mais vulneráveis, que dependem do SUS para tratamento. Melhorar o tratamento pode diminuir os custos e melhorar a vida desses pacientes, que enfrentam não apenas desafios médicos, mas também impactos econômicos e psicológicos. A proposta está alinhada com metas de desenvolvimento sustentável da Organização das Nações Unidas (ONU), buscando reduzir mortes prematuras e promover inclusão social.


Métodos

A correção das células-tronco para transplante autólogo - procedimento em que as células-tronco do próprio paciente são coletadas e utilizadas no transplante - adota a coleta das células-tronco do sangue do paciente que depois são submetidas à correção genética e reimplantadas no próprio paciente. As células-tronco corrigidas darão origem a hemácias saudáveis, que não obstruirão os vasos sanguíneos do paciente, deixando-os livres das complicações da doença.

Para chegar ao resultado esperado são feitas as seguintes etapas:

Obtenção de células CD34+ de pacientes com Anemia Falciforme (AF):

As bolsas de sangue que sobram do tratamento de exsanguinotransfusão (troca de sangue) de pacientes com anemia falciforme serão usadas para isolar as células chamadas CD34+. Essas células serão congeladas para uso em experimentos futuros.

•  Cultivo celular (crescimento de células em laboratório):

Durante o projeto, diferentes tipos de células serão usados para testar e validar as técnicas de edição genética. Elas ajudarão a ver como as estratégias funcionam em laboratório, especialmente nas que formam células vermelhas do sangue.

Serão usados três tipos principais de células:

  • Células HUDEP2: derivadas de sangue de cordão umbilical humano, que ajudam a formar células vermelhas.
  • Células CD34+ de pacientes com Anemia Falciforme (AF): obtidas de bolsas de exsanguinotransfusão (troca de sangue).
  • Células CD34+ de doadores saudáveis: obtidas comercialmente, também ajudam a formar células vermelhas.
  • Cada tipo de célula será cultivado em um meio específico, que serve como um "alimento" líquido para as células crescerem.

    • Edição Gênica (modificação do DNA das células):

    As células do estudo serão preparadas e em seguida passarão por um processo de eletroporação, onde o material genético que edita o DNA (mensageiro de RNA e gRNA) será nelas inserido.

    Depois de 24 horas desse processo, as células serão analisadas para verificar se estão saudáveis e se a edição funcionou corretamente.

    •  Imunofenotipagem:

    Após 24 e 48 horas do processo de edição genética, as células passarão por uma análise chamada imunofenotipagem, que verifica a presença de certos marcadores nas células, como o CD34+ (que indica células com capacidade de regeneração a longo prazo). Além disso, será medida a viabilidade celular, ou seja, se as células estão vivas e saudáveis.

    •  Análise de edição gênica:

    Por meio do sequenciamento genético será avaliado se a edição genética nas células funcionou corretamente. Os resultados serão analisados por softwares especializados que ajudam a interpretar as mudanças feitas no DNA.

    Validação Funcional In Vitro do Potencial de Diferenciação das Células-Tronco e Progenitoras Hematopoiéticas (CTPHs) e HUDEP2 (linhagem celular utilizada para estudos e pesquisas no campo da hematologia e terapia gênica):

  • Ensaio de Formação de Colônias (CFU) em Metilcelulose (composto com aplicações importantes em pesquisa científica, indústria farmacêutica, cosmética e construção, devido às suas propriedades de solubilidade e viscosidade controláveis): células CD34+ serão cultivadas por 14 a 16 dias para avaliar seu potencial de formar colônias. A morfologia das colônias será analisada para verificar a capacidade de diferenciação das células. Será demonstrado que a edição genética não afetou o potencial das células.
  • Ensaio com Células Estromais: para compensar limitações do teste anterior, células CD34+CD45RA- serão cultivadas com células estromais MS-5 (linhagem de células de origem de camundongos, amplamente utilizadas em pesquisa biomédica, especialmente na área de hematologia), o que oferece melhores condições de sobrevivência e diferenciação em células hematopoiéticas - células especiais encontradas na medula óssea, responsáveis pela produção das células do sangue, como glóbulos vermelhos, glóbulos brancos e plaquetas. Essas células são importantes para tratamentos que envolvem a regeneração do sistema sanguíneo, como transplantes de medula óssea e terapias gênicas.
  • Diferenciação Eritroide In Vitro de Células CD34+: a diferenciação das células CD34+ será induzida para avaliar tanto o estágio de maturação quanto a produção de hemoglobina.
  • Diferenciação Eritroide In Vitro de Células HUDEP-2: células HUDEP-2 - linha celular específica desenvolvida para esses estudos, que ajuda os pesquisadores a investigarem como corrigir mutações genéticas associadas a condições como anemia falciforme e beta-talassemia - serão cultivadas para avaliar seu potencial de diferenciação eritroide, que se refere a células ou processos relacionados à produção de glóbulos vermelhos (eritrócitos) no sangue. A maturação será acompanhada por imunofenotipagem, ou seja, verificará as mudanças ocorridas nas características das células à medida que elas amadurecem. Isso ajuda a garantir que as células estejam se desenvolvendo corretamente e atingindo o estágio desejado de maturação.
  • Análise da Diferenciação por Imunofenotipagem: a diferenciação eritroide será monitorada em vários e essa análise será feita por citometria de fluxo, ferramenta poderosa para estudar e monitorar a biologia celular de forma detalhada e precisa.
  • Análise Morfológica por CytoSpin: células serão fixadas e coradas para análise morfológica em diferentes estágios da diferenciação, utilizando microscopia óptica.
  • Análise da Expressão de Globinas em Eritrócitos Diferenciados por HPLC: as proteínas de hemoglobina das células serão analisadas por HPLC - técnica de cromatografia líquida de alta eficiência usada para separar, identificar e quantificar os componentes presentes na amostra e verificar a expressão de cadeias de globina humanas e murinas (proveniente de ratos).
  • Análise da Expressão Gênica de Globinas: o RNA das células eritrocíticas será isolado e usado para quantificar as cópias de beta-globina selvagem e mutante através de PCR digital.
  • Ensaio de Falcização de Células CD34+: após a diferenciação, as células serão expostas a condições de hipóxia ou normóxia para monitorar eventos de falcização, como deformações celulares. O procedimento visa estudar como diferentes níveis de oxigênio afetam a forma e a função das células, particularmente em condições que imitam a anemia falciforme.
  • •  Estudo de enxerto em longo prazo de células CD34+:

    Para avaliar a função das células-tronco editadas, elas serão transplantadas em camundongos, com amostras de sangue e medula analisadas após 16 semanas. Estas células serão retransplantadas em outros camundongos e analisadas após 12 semanas. Também será avaliada a distribuição das células em diferentes órgãos e a segurança do procedimento. Após o transplante, as células serão maturadas in vitro, e sua diferenciação eritroide será avaliada, com análises genéticas adicionais de clones importantes.

    •  Adaptação do protocolo para GMP e qualificação da manufatura:

    Após validar o protocolo de edição gênica, será iniciada a preparação para aplicá-lo, adaptando o processo para a fase de manufatura. Testes em pequena escala serão realizados para avaliar a viabilidade celular, pureza, esterilidade, segurança e impurezas. Amostras serão coletadas para testes microbiológicos, endotoxinas, microorganismos e análise de citocinas e metabólitos.

    • Transição de sistema de cultivo e subida de escala:

    No triênio anterior (2021-2023), a equipe validou com sucesso a plataforma G-Rex para cultivo celular ex vivo (fora do corpo) de células CTPHs, avançando para a manufatura de terapia gênica em sistema fechado.

    • Análise de genotoxicidade, que é a capacidade que algumas substâncias têm de induzir alterações no material genético de organismos a elas expostos:

  • Análise de off-targets dependente de RNA guia e
  • Análise de off-targets independente de RNA guia.

  • Resultados

    O projeto visa desenvolver um tratamento curativo para anemia falciforme por meio de transplante autólogo de células-tronco hematopoiéticas corrigidas por terapia gênica.


    Equipe

    • Hospital Israelita Albert Einstein





    Indicadores

    17
    Quantidade de profissionais
    envolvidos em pesquisa

    Instituições

    • São Paulo

      hospital israelita albert einstein

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